Vômitos e os novos sujeitos políticos



Por Laura Erber

A crise da representação política tem gerado náuseas e vômitos. O desgosto diante do rolo compressor neoconservador e dos acintes da extrema direita em ascensão ganham assim sua expressão mais instintiva e intestinal. Estamos vomitando sozinhos e juntos. Vomitamos de manhã, à tardinha, noite adentro. Há dias, meses, anos talvez.

Vomitamos por impotência, ou por que esgotamos os recursos críticos? O vômito seria nossa última possibilidade expressiva perante a falta de novos modos e meios de organizar nosso espanto e nossa revolta? Essa bulimia coletiva mostra que não é evidente passar do vômito compulsório a formas de debate e intervenção política em diversas áreas de atuação. Que tipo de saída da perplexidade bulímica os novos protagonistas da revolta social e política podem nos sinalizar?


Apesar de cumprir um papel expurgativo talvez importante, o vômito continua a ser uma figura de nossa revolta estática. Gesto de desgosto que já se vê de antemão derrotado em seu alcance mobilizador. Os vomitaços coletivos realizados em enxurrada nas páginas de políticos já seriam talvez um passo na direção de uma outra espécie de violência simbólica, um ritual virtual de refluxo, que devolve aos nossos dirigentes a mesma imundície de que são feitas suas ideias políticas.

Mas se o vômito como arma simbólica lembra um pouco estratégias muito usadas em brigas infantis, é curioso notar que os adolescentes perplexos não estão vomitando. As jovens feministas e os estudantes secundaristas também estão perplexos e não é pelo vômito que expressam sua revolta e sua crítica.

As primeiras têm claramente apostado na potência da linguagem, através de um trabalho sistemático e cotidiano de desmontagem dos discursos dominantes. Os segundos entenderam a força contagiante e por que não também comovente da reinvenção de uma comunidade e do sentido do comunitário como experiência de abertura ao compartilhamento do mundo. Perceberam que têm força para reivindicar um outro uso dos espaços de ensino, alterando inclusive a própria ideia instrumentalizante de escola, transformando-a em um laboratório experimental de outras formas de vida e cidadania. Feministas e secundaristas encampam uma razão política da qual os afetos não estão excluídos. O empoderamento feminista revê o lugar e a função da animosidade, da irritação, da cólera, do riso e da violência discursiva na democratização dos lugares da fala e no ataque profundo ao machismo estrutural. Há algo como a reinvenção das formas de contestação em jogo nas campanhas feministas realizadas nas redes sociais, uma vez que criam novas articulações entre a linguagem e as verdades que denunciam as ilusões de coerência, neutralidade, objetividade e alcance universal da verdade masculina hegemônica.

Os secundaristas mostram o que é resistência na prática, e ambos encetam uma compreensão política do real que altera sua própria identidade. Recusam-se a submeter-se a certa ordem das coisas que reduz o aprendizado à sala de aula e atividades oficiais alargando os limites da formação educacional. Essa rebelião estudantil não vangloria a violência e não tem nada de declamatório. Seus discursos não estão à frente de suas ações, são jovens extremamente articulados mas que mantêm suas falas bem atadas ao real da prática. Quando lavam banheiros, cozinham juntos e inspecionam armários encontrando materiais novos e desperdiçados que lhes caberiam por direito, estão intervindo diretamente nas noções de público e privado, exigindo uma nova amarração entre a dimensão simbólica e o real da vida escolar.

A irrupção desses grupos pode ser vista a partir do prisma do filósofo e semiólogo italiano Paolo Virno. Para ele, a nova dimensão da ação política precisa ser entendida como consequência do esgotamento da política institucional, que, no contexto das democracias neoliberais, tenderia a bloquear a ação política, ficando aquém da possibilidade de intervenção na asfixiante ciranda de burocratização, delegação e corrupção.

Não significa que as formas institucionais da política devam ser descartadas, mas sim que os novos sujeitos contestatórios e as formas mais efetivas de desobediência civil não estão sendo gestadas no interior da militância tradicional.

Nem nos nossos vômitos.

Publicado originalmente no Suplemento Pernambucano.

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