Os sentidos da vitória de Macri na Argentina


A vitória de Maurício Macri nas eleições presidenciais argentinas, derrotando o candidato peronista Daniel Scioli, além da interrupção de mais de uma década de kirchnerismo no poder, pode representar um ponto de virada na conjuntura política da Argentina. Algumas certezas e indicativos claros já se apresentam, mas quais serão seus desdobramentos e em que medida Macri terá condições de implementar a sua agenda e consolidar uma nova hegemonia política ainda é uma grande incógnita.

O longo período de dificuldades econômicas, agravado durante o final do mandato de Cristina Kirchner, fomentou um ambiente favorável para o crescimento de um discurso mudancista de oposição. Mas longe de representar uma "grande onda" a varrer o  kirchnerismo e os setores populares do poder institucional argentino, a composição de parlamento eleito com maioria peronista, indicam uma possível continuidade de uma polarização política que poderá ter importantes desdobramentos.

As primeiras medidas anunciadas pelo recém-empossado presidente Macri são um bom indicativo do que está por vir e podem ser decisivas.

Sabedor das dificuldades que terá para governar sem maioria parlamentar nas duas casas legislativas, inclusive sem contar com um partido forte a lhe dar sustentação direta, mesmo com Macri sendo o fundador do partido conservador Proposta Republicana (PRO), este possui uma frágil organização e base eleitoral, o que impôs a necessidade da coligação Cambiemos ter de se socorrer com a centenária Unión Cívica Radical para lhe dar sustentação e viabilidade, fragilizando a ideia de "novidade política" que tem buscado sustentar.

Pregando um discurso conciliador e de união nacional após a vitória, suas primeiras medidas apontam justamente para uma direção oposta.

Disposto a levar a cabo uma política de ajustes de matriz neoliberal, já anunciou o fim dos subsídios às tarifas dos serviços elétricos e de gás natural, o que deverá atingir ao conjunto da população com o aumento das tarifas. Macri promoverá a eliminação do imposto às exportações de milho, trigo e carne, e uma redução à taxa da soja, decisão que beneficia os grandes produtores agrícolas. Medidas similares deverão beneficiar também ao setor industrial. Estas medidas deixam o Estado então sem uma fonte de arrecadação aos seus cofres, para compensar a perda, tirar os subsídios aos serviços é uma das saídas escolhidas, o custo social é secundarizado.

Seguramente a decisão que possui até o momento a maior capacidade de provocar reações e que aponta para um sentido regressivo ao kirchnerismo é a intenção de promover o fim da Lei de Meios e o retorno ao monopólio do Clárin. Pela Lei de Meios, organizações sociais e à sociedade argentina em geral, passaram a ter participação na política de comunicações da Argentina. Este controle se dava por meio de duas agências, a AFSCA – Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual e a AFSTIC – Autoridade Federal de Tecnologias da Informação e das Comunicações. Por meio de um DNU (Decreto de Necessidade e Urgência), Macri já determinou que estas duas agências ficarão subordinadas ao Ministro das Comunicações, Oscar Aguad, a quem também competirá supervisionar a revisão da Lei de Meios. Esta decisão já levou milhares a tomarem a Praça de Maio em protesto contra este retrocesso.

Outra medida anunciada pelo novo ministro da fazenda argentino, Alfonso Pratt Gay, é o fim do "cepo cambiario" estabelecido por Cristina Kirchner em 2011, assim como uma série de outras medidas que visam desregular o controle sobre a cotação e circulação de dólares na  Argentina. É verdade que o atual sistema de câmbio era muito irregular e provocava saída de capitais do país por vias não tradicionais. No entanto, esta desregulação poderá num primeiro momento até gerar um maior ingresso da moeda norte-americana, mas não necessariamente permitirá uma recuperação do Peso, pelo contrário, poderá expor a moeda local a uma maior vulnerabilidade e até mesmo gerar excessiva dependência de "capital podre". No primeiro dia da flexibilização, o Peso argentino já se desvalorizou perto dos 40%.

Estas primeiras ações confirmam o que muitos já apontavam: a vitória do Macri na Argentina representa um inegável avanço do conservadorismo na América Latina. Mas a estreita margem de votos que lhe garantiu a vitória, a composição do parlamento argentino e a força social do peronismo, permitem projetar grandes dificuldades para Macri implementar sua agenda neoliberal. A possibilidade de vivermos momentos de forte ebulição social, com alguma semelhança com o ocorrido durante os breves e sucessivos governos neoliberais nos anos 2000 e 2001 não pode ser de todo descartado. Principalmente em um cenário de continuidade da crise econômica mundial.

O peronismo prosseguirá como a principal força popular na Argentina, o kirchnerismo deverá seguir com uma importante força. A probabilidade de o peronismo passar por mudanças para além do kirchnerismo é um cenário que já se esboça, como o movimento de algumas importantes lideranças peronistas declarando independência com relação a Cristina já sinaliza para isto.

Pode ser também que, na esteira desta mudança política, a esquerda não-peronista finalmente consiga se organizar e projetar-se como uma alternativa viável nestes próximos anos. A história recente mostra que esta última alternativa é pouco provável, encontrando muitas dificuldades internas, mas a existência de uma importante sociedade civil organizada representa a viabilidade social para isso, ainda que as condições políticas ainda não estejam maduras.

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