Vivemos tempos onde
o discurso hegemônico no mundo se apresenta com uma incontornável
aspiração a um triunfalismo irredutível. O mais paradoxal é que,
a despeito desta narrativa apologética do pensamento único, o mundo
está longe de viver tempos de prosperidade. Velhos problemas
permanecem sem solução - ainda que por ventura com novas feições
- e novos desafios surgem a todo instante, colocando a humanidade em
uma dura encruzilhada. Em um momento como este, a busca de
alternativas se fazem urgente, talvez, mais do que nunca, é o
momento da esquerda recuperar uma capacidade ofensiva. Necessitamos
de um movimento contestatório de grande escala, capaz de recuperar a
possibilidade de mudanças sociais profundas e duradouras.
Certamente deve soar
quixotesco para alguns leitores dessas linhas falar em “movimento
global” por mudanças, ainda que esta consigna seja deliberadamente
vaga. Não me refiro a movimento no singular, mas a movimento em uma
acepção expandida, sem um único centro, em rede, com um centro
convergente de objetivos de lutas. Um movimento que representa o
lugar da esquerda neste século XXI. Não ousamos aqui falar em qual
seu projeto estratégico, formas de organização ou outras
definições fundamentais, o objetivo aqui é um pouco mais modesto.
Se buscará esboçar a seguir, de forma não conclusiva, alguns
elementos significativos e que poderiam constituir um centro da luta
e do horizonte de possibilidades para a esquerda neste momento
histórico.
Ao longo do século
XX, a esquerda viveu momentos de incontestável força, estando
presente em praticamente todo o mundo, promovendo mudanças
paradigmáticas na sociedade, colocando o próprio capitalismo em uma
situação de permanente contestação e verdadeira ameaça. O
cenário neste século XXI é bastante diverso, onde muitas vezes a
esquerda encontra-se marginalizada e sem força social. Na Europa,
outrora berço de pujantes movimentos políticos radicais, de uma
forte e organizada classe operária, não faltam exemplos de países
onde a esquerda passou a ser um mero figurante na disputa política
nacional.
A questão como está
colocada, no entanto, está longe de permitir espaço para
voluntarismos e nostalgias desvairadas. A roda da história não
volta para trás. Mas qual então a perspectiva para a esquerda neste
século XXI? Quais as lições a serem tomadas, nos primeiros
momentos deste século, para se pensar a própria esquerda? Quando me
refiro aqui a esquerda, obviamente estou me referindo a todo um
movimento mais amplo, não restrito a uma única corrente de
pensamento ou forma de organização. Penso aqui no conjunto de
setores que buscam se colocar a margem ou diretamente em oposição
ao neoliberalismo reinante. O anticapitalismo também poderia ser um
elemento identitário desta esquerda, ainda que atualmente não
muitos ousem fazer referências públicas a este consigna. Uma das
grandes vitórias do discurso dominante é justamente esta impressão
que o capitalismo em si não pode ser questionado, quando muito
reformado. O socialismo, a principal proposta sistêmica alternativa
ao regime do capital, fragilizada na grande massa, carece recuperar
terreno, mas isso é uma questão para outro momento.
A “crise da
esquerda”, para se encarar a questão em toda a sua devida
complexidade, vêm acompanhada de uma crise generalizada de
descrédito com a própria política. Em democracias cada vez mais
rarefeitas, onde a vontade popular está longe de ser um fator a
determinar os rumos políticos das nações, as alternativas
políticas pela via eleitoral, cada vez mais se apresentam como
limitadas, pouco permeáveis aos anseios das populações. O exemplo
mais nevrálgico deste ponto é o tema da política econômica.
Encarada como um assunto de competência restrita para os “técnicos”,
a suposta “neutralidade” dos mercados é a ponto de partida para
um conjunto de políticas que, sob o manto da tecnicidade
desumanizada, busca encobrir o caráter profundamente parcial e
vinculado ao ideário neoliberal. As eleições passaram a ser um
momento de escolher quem estará a frente da nação para gerir
basicamente a mesma política econômica. Mudasse as bandeiras e
rostos a frente do governo, sem que o essencial seja sequer abalado.
O discurso
hegemônico, longe de garantir sequer parcialmente suas promessas, é
revestido de uma profunda irracionalidade dogmática, apresentando-se
como um imperativo categórico incontornável. Sua hegemonia fica
ainda mais evidente quando observamos como muitos de seus princípios
categóricos foram assimilados por forças políticas que
historicamente se situam (ou se situavam) no campo da esquerda. Os
valores morais do capitalismo, em sua face neoliberal, parecem
confirmar a análise do filósofo alemão Walter Benjamin, de que o
capitalismo teria se convertido em uma religião. O que precisamos
neste momento é de heresia contra a ditadura do capital, de vozes
blasfêmicas e insurgentes contra o status quo.
Insurgir-se contra
esta verdadeira “ditadura dos mercados” é um ponto de partida
inescapável para a esquerda no atual momento. Se é verdade que a
margem de ação para um governo, eleito pela via democrática, é
extremamente limitada e sujeita a diferentes reveses, por outro, a
simples sujeição a este receituário, em nome de taticamente
salvaguardar ou implementar, políticas setorizadas que possam
mitigar seus efeitos nefastos para as populações, tem se mostrado
uma alternativa de curto efeito.
Este é um aspecto
que muitas vezes é negligenciado pelas esquerdas, que é a
necessidade de construir e buscar consolidar um discurso alternativo.
Indo na direção daquilo que Antonio Gramsci apontava como a disputa
de hegemonia, indispensável para se construir alternativas concretas
para a sociedade. A hegemonia seria a capacidade de um grupo social
unificar em torno de seu projeto político um bloco mais amplo, não
homogêneo, marcado por contradições de classe. O grupo ou classe
que lidera este bloco é hegemônico porque consegue ir além de seus
interesses econômicos imediatos, para manter articuladas forças
heterogêneas, numa ação essencialmente política, que impeça a
irrupção dos contrastes existentes entre elas. Ainda que seja um
conceito recorrentemente evocado por muitos setores da esquerda, ele
é pouco exercitado de forma efetiva, tamanha a dispersão de um
discurso com força social suficiente para se apresentar como
contra-hegemônico. Em sua ausência, não raro a apatia
despolitizada ganha farto espaço junto a sociedade, quando não raro
ocorre algo ainda pior, que é o sequestro desta indignação popular
espontânea para causas reacionárias e nacionalistas.
Desde a crise de
2008, a força do discurso neoliberal ganhou fissuras e
fragilizou-se, principalmente com seu prolongamento, sem sequer haver
ainda uma expectativa de superação da estagnação ou recessão
econômicas que tem dado a tônica nestes últimos anos na economia
global. Os movimentos contestatórios que se seguiram ao redor do
mundo não tiveram até o momento força suficiente para reposicionar
a esquerda no mundo, seguindo ainda sem uma capacidade ampliada de
disputar uma nova narrativa para os rumos políticos das sociedades,
fora algumas notáveis exceções. Na América Latina, mesmo com
alguns recentes sinais de fragilidade (ou mesmo de aparente
esgotamento), é ainda o espaço onde em melhores condições a
esquerda tem conseguido imprimir uma agenda de resistência. Talvez
seja o momento de buscar passar do estágio da resistência para o do
avanço, de maior intensidade.
Mas, se por um lado,
esta condição ainda não se colocou plenamente, não podemos nos
prostrar e acreditar que não existam elementos a advogar a favor de
um possível (e provável) fortalecimento da esquerda e de um amplo
movimento antineoliberal e anticapitalista em escala global. O início
do atual período, herdeiro do colapso do chamado Socialismo Real no
leste europeu, tem acompanhado novas dinâmicas ao redor do mundo.
Uma dispersão de propósitos muitas vezes têm fragilizado a
construção e emergência de novas formas orgânicas da esquerda. Os
protestos altermundistas do final dos anos 90 e início dos 2000,
assim como o processo do Fórum Social Mundial são notórios
exemplos de uma rica energia que se esvaiu. Incapaz de superar alguns
de seus limites, não pode reagir as aceleradas mudanças
conjunturais que o acompanharam.
Isto posto, nos
parece por demais evidente que o futuro da esquerda passa pela via
política, não é o melhor caminho abdicar deste expediente, ainda
que seguramente limitado. A ditadura dos mercados que hoje governa o
mundo, é uma feroz adversária da política, pois é através dela
que o povo – este elemento indesejável, porém necessário para
eles – pode se manifestar. A democracia, outrora um elemento
central do discurso liberal utilizado para contrapor ao comunismo
soviético, hoje é facilmente descartável frente as exigências da
banca. Desta forma, defender que os mecanismos de sufrágio sejam de
fato respeitados, e mais do que isso, estendidos para uma efetiva
participação cidadã da população na gestão pública, acaba por
adquirir um caráter quase que subversivo para o establishment. O que
significa, combinar ações que extrapolem os limites atualmente
impostos pelos canais institucionais, de forma a pressionar mudanças
efetivas que fortaleçam a participação popular.
Em síntese, o
centro para uma alteração qualitativa da conjuntura passa por
enraizar no conjunto da esquerda a clareza de que, sem enfrentar os
alicerces que estruturam a ditadura financeira neoliberal, todo e
qualquer avanço pode ser revertido e assimilado. Seja no plano da
institucionalidade (partidos, parlamentos, governos) ou dos
movimentos, devemos fortalecer a perspectiva de superação dos
preceitos que envolvem a ordem posta. Não negligenciando as
múltiplas dimensões que envolvem esta luta, que se retroalimentam,
um centro de enfrentamento, ainda que demasiado amplo e sem uma
delimitação rígida do “caminho a seguir”, nos parece, neste
momento, o mais adequado. Passa por reconhecer o valor de cada
lutador e lutadora e suas consignas, combatendo fortemente o velho e
suicida sectarismo que tantas vezes impediu o avanço da esquerda em
diferentes contextos. Assim, um mundo pós-neoliberal, cujos sinais
já se fazem presentes de forma embrionária, poderá se converter em
um movimento irrefreável. O anticapitalismo e o socialismo poderão
colocar-se na ordem do dia, saindo do plano político-teórico e
reassumindo uma condição de alternativa para a sociedade, em
renovadas bases para este século.
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