Em meio a colossal obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski, marcada por um realismo cáustico, onde questões existenciais são acompanhadas por uma aguda crítica da realidade social, um de seus contos escapa destas suas marcas, representando um "ponto fora da curva" em sua obra (perdão pelo uso deste jargão batido). Trata-se de O Crocodilo, escrito em 1864, onde o autor explora dois gêneros pouco desenvolvidos em sua obra: a comédia e o realismo fantástico.
A história se inicia em uma sofisticada galeria de lojas em São Petersburgo, onde o funcionário público Ivan Matviéitch é engolido vivo por um imenso crocodilo exposto à visitação. A partir deste acontecimento insólito, Dostoiévski inicia um de seus melhores e mais peculiares contos, que soube ainda magistralmente aliar uma fina critica social, através de sua sutil satirização do capitalismo.
Sua crítica mira tanto a velha ordem, através de uma sátira da burocracia das repartições públicas da antiga Rússia, quanto a nova ordem capitalista que começava a se instalar e abalava as tradições da sociedade russa. A penetração do capitalismo não diz respeito apenas ao conjunto de relações econômicas que comumente o caracterizam, mas também da imposição dos modos de vida europeus, provocando choques culturais e rupturas traumáticas, não necessariamente benignas como era vendida na concepção de progresso em voga na Rússia naquele período.
O crocodilo Fiódor Dostoiévski Editora 34 |
Qual é a propriedade fundamental do crocodilo? A resposta é clara: engolir gente. Como conseguir, então, pela disposição do crocodilo, que ele engula gente? A resposta é ainda mais clara: fazendo-o oco. (p.43)
Não haveria, em sua essência, nada que impediria ao sistema engolir, devorar ao outro, mas mantendo-o vivo, incorporando a sua própria essência. O único custo seria os efeitos colaterais de suportar a digestão do crocodilo, contanto que mantenha-se uma postura passiva, que não atormenta-se ao réptil com movimentos bruscos e indesejáveis.
O humor percorre a todo o conto, e é este mesmo humor que torna sua crítica ainda mais contundente. Seu deboche ao eurocentrismo que dominava muitas mentes na Rússia é certeiro, como quando retrata a imprensa e sua apologética:
Todos sabem que somos progressistas e humanos, neste sentido, procuramos às carreiras alcançar a Europa. (p.59)
Esta frase, lida pelo personagem Siemión em um jornal, que também defendia em seus editoriais o quanto era importante atrair capitais estrangeiros para a Rússia, não deixa de ser uma forma de expor o quão desvairado poderia ser a busca por reproduzir os padrões europeus e seu otimismo acrítico.
O que é ainda mais notável neste conto, pelo fato dele jamais ter sido concluído por Dostoiévski , é que ele consegue "fechar" uma narrativa que mantêm-se instigante. Neste seu retrato onírico da sociedade russa, expõe a realidade através da poderosa arma crítica do riso.
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