Um mapa da crise política no Brasil



Por Luciana Ballestrin 

O Brasil enfrenta sua maior crise política na história republicana recente. Seu tamanho e dimensão podem ser medidos pela crescente desestabilização institucional que tornou o futuro da democracia indeterminado no país. O conjunto de instituições e agentes envolvidos na crise é heterogêneo, dentro e fora do campo político tradicional que compreende os três poderes - Executivo, Legislativo, Judiciário. No âmbito ainda do Estado, mas fora do governo, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal calibram o cenário de tensão política com a Operação Lava-Jato, atualmente contestada pelo seu alto grau de politização e parcialidade. Também devem ser consideradas intervenções pontuais e participações especiais de outros atores, como as do Ministério Público de São Paulo ou do próprio juiz Sérgio Moro.


No âmbito do mercado, o protagonismo da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e o descontentamento do empresariado nacional revelam as justificativas econômicas para a crise política. Esta evidência pode ser comprovada na manipulação diária do “bom-humor” do mercado financeiro mediante à possibilidade da caída do governo Dilma ou a prisão do ex-presidente Lula com vistas às eleições de 2018. Neste enquadramento, somam-se o comportamento dos principais meios de comunicação, especialmente, a Rede Globo. Devido à própria ambiguidade da natureza que os grandes meios de comunicação foram adquirindo ao longo de todo o século XX – a democratização da informação no horizonte do lucro –, a Rede Globo constituiu-se como um dos sujeitos políticos e econômicos atuantes da crise política, não obstante a veiculação cotidiana de seu discurso defensivo sobre a difusão da “verdade”. No Brasil, isso é particularmente dramático em função da dependência de grande parte da população da mídia televisiva e jornais baratos de baixa qualidade que hegemonizam o mercado das informações. Portanto, neste momento é possível observar a orientação e o comportamento político da Rede Globo e dos principais jornais nacionais impressos e digitais (O Globo, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo). Em geral, colocam-se como emissores passivos da queda cotidiana da República.

Mas, é em um terceiro e último âmbito, o da sociedade civil, que dimensões civis, anticivis e não civis se interpõem, trazendo questões sobre participação política, militância, violência, fascismo e democracia. A polarização dos protestos em dois grandes campos antagônicos que disputam a hegemonia no interior da sociedade civil e para fora dela aparece como uma espécie de termômetro ou laboratório para a observação dos altos comandos e gabinetes. Nesta linha, o universo democrático e popular do associativismo e do ativismo brasileiro desde a redemocratização, vê-se confuso e difuso desde as Jornadas de Junho de 2013. Aqui o aspecto a ser destacado é o aparecimento de grupos patrocinados e indivíduos independentes para quem a corrosão do sistema político sob a justificativa do combate à corrupção não possui relação com o interesse público, com o aprofundamento da cidadania, com o aumento da inclusão e com o alargamento da democracia. 


O desenho deste mapa (provisório, incompleto e imperfeito) pretende demonstrar a complexidade da crise brasileira atual e negar também reducionismos econômicos para sua explicação. Reducionismos de todas as sortes são perigosos no momento. Também, chamar a atenção para o fato de que as tentativas de explicação da crise não são e nem podem ser completamente imparciais. Em graus mais ou menos evidentes, todos e todas que pretendem falar sobre e pela crise estão falando de algum lugar e posição. A cilada da imparcialidade e da neutralidade analítica tem sido montada por diferentes jornalistas e analistas. Neste aspecto, é preciso ter a ciência de que como biografias inscritas neste processo histórico particular, todos nós que saímos para a disputa da verdade, guerra das palavras e publicidade das ideias temos responsabilidade redobrada. A questão é com o que e para quem. 


Para o plano analítico, portanto, é preciso reconhecer que vários ângulos, interpretações e versões estão sendo disponibilizadas ao país e ao mundo a cada segundo sobre o que se passa no Brasil. Nem todas possuem o cuidado da não generalização dos interesses, dos atores e das instituições envolvidas; daí que palavras ponderadas como “parcelas” e “setores” são muito bem-vindas. O acompanhamento da crise para quem está no Brasil tem se tornado uma tarefa árdua e difícil devido à complexidade e à velocidade dos acontecimentos. A particularidade do “golpe à democracia” que estamos assistindo, dá-se justamente pelo seu ineditismo no país e no continente latino-americano, familiarizado a golpes militares seguido do mergulho no medo e no terror. E, neste aspecto, é preciso reconhecer com honestidade e franqueza intelectual que não há plano analítico que consiga prescindir de um plano valorativo. “Democracia”, “golpe” e “verdade” se revelam significantes vazios altamente disputados, e, portanto, relativos. Há, porém, caminhos limitados ou infinitos para esta relatividade. É por isso que as forças progressistas, legalistas e democráticas do país estão neste exato momento mobilizados pela defesa da legalidade da Constituição de 1988 e do respeito ao resultado eleitoral das eleições presidenciais de 2014. Nota-se que o questionamento da legitimidade do segundo mandato do governo de Dilma Rousseff foi iniciado antes do seu próprio início em 2015, já em outubro de 2014, tornando frágil o argumento de sua incompetência ou inépcia para o exercício no cargo, mediante à ausência de provas de um envolvimento pessoal nos esquemas de corrupção. A noção de “golpe” tem sido, portanto, resignificada por não se tratar dos tradicionais golpes civis-militares que marcaram os períodos dos regimes autoritários na América Latina e que configuraram nosso “estado burocrático-autoritário”.


Ainda que existam claros sinais de orquestração, inteligência e intencionalidade para derrubada do governo Dilma, o movimento em curso ainda pretende recolher adeptos e apoiadores, não respondendo necessariamente a um único centro de comando ou poder. Também, a crise é monitorada e cacifada por atores e instituições que não estão localizadas no Brasil. É justamente esta indeterminação que não deve permitir dúvidas quanto ao momento que vivemos hoje. A suspensão da democracia no Brasil em seus aspectos mais formais e institucionais avançará em um timing lento, inseguro e gradual. O custo será muito alto e a conta será cobrada indiscriminadamente. Não pode haver espaço para incerteza por parte de todos e todas que estão ao lado da democracia, em seu sentido minimalista ou maximalista. Como analistas e cidadãos, a história não nos absolverá. 


*Luciana Ballestrin é Cientista Política e professora da Universidade Federal de Pelotas

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