Entre o fujimorismo e o neoliberalismo: o Peru, no fio da navalha
2016 foi palco de uma acirrada disputa eleitoral pela presidência do Peru. No segundo turno, os eleitores peruanos estiveram em uma dura encruzilhada: ou um regresso ao fujimorismo ou ao neoliberalismo, representados nos candidaturas de Keiko Fujimori e Pedro Pablo Kuczynski, respectivamente. Em meio a estas tenebrosas alternativas, o povo peruano optou por Kuczynski, por uma estreita margem de votos, a menor já registrada em uma eleição na América Latina. No entanto, esta frágil vitória não derrotou o fujimorismo, que poderá vir a assumir o poder de fato.
Mesmo em um cenário tão adverso, o Peru presenciou uma renovação da esquerda, com a candidatura de Verónika Mendoza, da Frente Ampla. Sua campanha surpreendeu e por uma pequena margens de votos não foi para o segundo turno contra a Fujimori, O cenário político peruano que se desenha pós-eleições deverá ser turbulento e de transição para uma nova conjuntura aberta de possibilidades, muitas delas nada animadoras.
O fujimorismo busca se impor como a força hegemônica na sociedade peruana e por muito pouco não conseguiu. Sem ter ainda uma força alternativa que de fato se contraponha e dispute uma alternativa política real para o Peru, o cenário tende a ser de ofensiva conservadora.
Para uma boa análise das eleições peruanas, reproduzimos a seguir o artigo de Antonio Luiz M. C. Costa na revista Carta Capital, que traz uma boa síntese do processo e dos desafios colocados para o futuro político peruano.
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A apuração criou um longo suspense e o resultado oficial, decidido no olho mecânico, confirmou a vitória do economista neoliberal Pedro Pablo Kuczynski sobre Keiko Fujimori, herdeira do populismo conservador e autoritário do pai, mas por um fio de cabelo. Com 100% dos votos contabilizados, Kuczynski teve contava com 50,12% dos votos válidos.
Apesar de o segundo turno ser disputado entre dois candidatos de direita e a esquerda só ter pedido o voto útil em Kuczynski nas últimas semanas, o clima de polarização no segundo turno foi comparável ao de países onde se enfrentaram candidatos de campos realmente opostos.
Enquanto eleitores de Fujimori proclamavam votar contra o “terrorismo”, ou seja, as esquerdas, o neoliberal apoiado por quase todas as demais forças políticas (inclusive o escritor e ex-candidato Mario Vargas Llosa) tornou-se o “candidato da democracia”.
Mais uma vez, o Peru terá um presidente fraco ante um Legislativo hostil. No primeiro turno, a Força Popular dos Fujimori obteve a maioria absoluta do Congresso com 73 dos 130 deputados e o Peruanos Por el Kambio (sic, para formar a sigla PPK, igual à do líder) um mero terceiro lugar, com 18 deputados.
O segundo, com 20, foi da Frente Ampla da esquerda, que teria passado ao segundo turno em seu lugar se sua candidata Verónika Mendoza não tivesse dividido votos com outro candidato de esquerda, Gregorio Santos, popular em Cajamarca.
O partido e a ex-candidata, chamada de “terruca” (terrorista) por Kuczynski durante a campanha, foram decisivos para a mobilização que incluiu uma marcha de 30 mil pessoas contra o retorno do fujimorismo.
Três legendas de centro e centro-direita dividem os demais 19 deputados. A Aliança Para o Progresso (APP), cujo líder, César Acuña, empresário da educação impedido de concorrer à Presidência por doações a eleitores (enquanto o partido fujimorista, conhecido por distribuir panelas, bicicletas, cobertores e fogões em bairros pobres, não sofreu a mesma sanção) tem nove cadeiras e talvez seja a mais próxima do PPK, embora seja mais populista.
Outros cinco deputados pertencem à Ação Popular que, liderada pelo ex-jornalista Alfredo Barnechea, é herdeira de centro-direita do falecido ex-presidente Fernando Belaúnde Terry.
A terceira, Aliança Popular, é um improvável abraço de dois inimigos em decadência, sem a qual não conseguiriam o mínimo de 5% dos votos necessário para eleger congressistas e talvez sequer os 2% necessários para não perder o registro.
Juntaram-se o APRA (“Aliança Popular Revolucionária Americana”) de Alan García, outrora o principal partido da esquerda anti-imperialista peruana e o conservador Partido Popular Cristão de Lourdes Flores, que apoiou Mario Vargas Llosa em 1990 e Kuczynski em 2011 e é ligado aos setores mais conservadores da Igreja Católica no Peru, dominados pelo Opus Dei.
Tanto pelo próprio resultado quanto pela composição do Congresso, a posição de Kuczynski, que assumirá em 28 de julho, é aritmeticamente mais precária do que foi a de Ollanta Humala. Eleito com um programa de esquerda nacionalista, o presidente em fim de mandato teve uma margem sobre Keiko Fujimori pouco superior a 3% em 2011, sua frente “Ganha Peru” elegeu apenas 47 deputados e viu-se em minoria em um Congresso amplamente dominado pela direita, fujimorista ou tradicional.
Forçado a ceder, acabou por fazer um atribulado governo neoliberal, reprimiu movimentos sociais e desmoralizou sua base política. Chegou ao fim com base parlamentar reduzida a 25 deputados e popularidade de 17%. Seu Partido Nacionalista Peruano acabou varrido do mapa político, pois em 11 de março, com 1% de intenção de voto nas pesquisas, ele e a esposa decidiram unilateralmente retirar seu partido da disputa.
Abandonados, os integrantes da chapa presidencial e os 12 congressistas que tentavam a reeleição os acusaram de traição. Também desapareceu o partido do ex-presidente Alejandro Toledo, cujo “Peru Possível” teve menos de 2% dos votos.
O fujimorismo está em posição de bloquear qualquer iniciativa do Executivo e fazer de Kuczynski um refém. É provável que a primeira exigência seja o indulto ao ex-ditador Alberto Fujimori, preso desde 2007 e condenado a 25 anos de prisão por 25 assassinatos, sequestros de opositores, escutas ilegais, apropriação de fundos públicos e subornos a funcionários, congressistas e jornalistas.
Esses crimes amplamente documentados estão longe de cobrir todos os abusos de seu governo, que incluem a esterilização forçada de 200 mil mulheres, o massacre de milhares de camponeses e a cumplicidade com o narcotráfico.
Apesar disso, é a “mão dura contra o crime”, inclusive a promessa do retorno da pena de morte, que motiva tantos peruanos a votar nos Fujimori e seus seguidores.
Apesar de uma das taxas mais altas de crescimento econômico da América Latina nas últimas décadas, o Peru é um dos países socialmente mais precários do continente, com serviços sociais desmantelados, ensino de má qualidade, alta criminalidade, uma grande maioria dependente de empregos informais e vulneráveis e uma elite exageradamente alérgica à esquerda, devido às ameaças sofridas do regime militar de Juan Velasco Alvarado à insurgência do Sendero Luminoso.
Um governo neoliberal frágil, ilhado entre uma direita populista inescrupulosa e uma esquerda renovada, terá muita dificuldade em lidar com um cenário econômico internacional cada vez mais difícil para as commodities minerais peruanas e pode se sentir tentado a aderir incondicionalmente ao autoritarismo.
*Publicado originalmente na edição 905 de CartaCapital, com o título "No fio da navalha"
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