Homofobia e hipocrisia
Todas as manifestações de preconceito estão assentadas sob o véu da mentira. Com origens e gradações variadas, o preconceito só se estabelece a partir de uma ilusão fabricada que identifica no outro a síntese das imperfeições e malefícios, em oposição a uma pureza e justeza exclusiva daqueles que combatem o diferente. Entre toda a ampla gama de manifestações de intolerância presentes na sociedade, a homofobia é seguramente aquela que está mais intimamente ligada a hipocrisia.
O atentado de 12 de junho na boate gay Pulse, em Orlando (EUA), que deixou um saldo de 50 mortos no pior massacre em solo norte-americano desde o 11 de setembro, gerou uma esperada comoção mundial. Infelizmente, ao lado de toda a justa solidariedade frente a tragédia, tivemos também uma onda hipócrita de relativização do ocorrido, tentando negar o caráter de homofobia do crime ou ainda, de forma mais isolada, até mesmo imputar as vítimas algum tipo de responsabilidade pela tragédia.
Nada pode ser mais hipócrita do que isso!
Talvez seja útil abordarmos o quê é a própria homofobia, antes de avançarmos sobre a sua hipocrisia. Este preconceito pode ser caracterizado por um tipo de medo, aversão, desprezo e até mesmo horror manifestado de forma exagerada ou irracional ante a homossexualidade em si ou em relação a pessoas homossexuais (Lésbicas, Gays, bissexuais, travestis e transexuais – LGBT). Ela se mostra em uma variedade de formas e intensidade, que vão desde impedimentos e violências simbólicas, como um olhar enviesado, as humilhações variadas, as múltiplas formas de agressões de ordem moral, física e material, culminando com suas manifestações mais grotescas, como espancamentos, violações e até mesmo o assassinato.
Toda hipocrisia é por sua própria essência seletiva e parcial. Se já é difícil - para não dizer impossível - não encontrar em outras manifestações de preconceito (machismo, racismo, xenofobia, etc) facilmente a sua dimensão hipócrita, na homofobia isto é ainda mais evidente. Todo homofóbico carrega em sua essência esta marca da mentira, o que varia entre eles é a consciência ou não desta mentira e o uso que faz desta mesma constatação.
Voltando ao caso da tragédia em Orlando, não vou aqui neste espaço reproduzir os argumentos usados por homofóbicos (declarados ou enrustidos) e muito menos seus autores, muitos deles sedentos por aproveitar a tragédia para ganhar audiência e notoriedade junto aos setores conservadores. Estes já detêm largo espaço nos grandes meios de comunicação e contam com suas próprias redes e canais de comunicação. Mesmo visando debater e até mesmo expor o ridículo de suas posições - que seria um caminho válido - não irei aqui emprestar legitimidade alguma a estes parlamentares, pastores, jornalistas e demais sub-celebridades que diuturnamente alimentam o discurso de ódio em nossa sociedade. Um primeiro passo, ainda que modesto em seu alcance, é não reconhecermos a estes agentes como interlocutores legítimos para o debate.
Muitos destes tem plena consciência do caldo de mentira que preenche o discurso da intolerância homofóbica e buscam manipular este preconceito em seu próprio proveito. A maior destas mentiras, e que de certa forma alimenta as demais, é a noção de que a homossexualidade é antinatural e, mais do que isso, que a sua existência na sociedade impediria, de alguma forma, a heterossexualidade.
Os registros históricos apontam, de forma incontestável, para a homossexualidade como uma manifestação recorrente em todos os agrupamentos e sociedades humanas. Expandindo para outro terreno, inúmeras espécies animais igualmente manifestam ocorrências de relações sexuais entre seres do mesmo sexo, e não restrito a mamíferos; aves e insetos também o apresentam, tornando falsa toda e qualquer tentativa de justificar seus preconceitos em termos "naturais" ou biológicos. Com base no argumento anterior, fica evidente a inconsistência daqueles que enxergam na homossexualidade como uma ameaça a heterossexualidade, afinal, se tal premissa fosse real, os casais héteros já não existiriam.
Combater a homofobia passa por combater a hipocrisia que o alimenta. Não aceitar nenhum retrocesso aos direitos conquistados, principalmente frente ao crescimento conservadorismo religioso que se espalha ao redor do mundo. Devemos ser intolerantes contra toda a forma de intolerância, somente assim poderemos começar um processo de retomada de avanços que impeçam que novas tragédias sigam se repetindo.
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