Por Francisco Louçã
Falhou um golpe, triunfa outro.
Imagine-se a leitora ou o leitor, por um instante, a ler estas notícias: “Venceu um golpe de Estado na Turquia, foram demitidos quase três mil juízes, fechados os jornais de oposição e presos dirigentes dos partidos parlamentares que se opõem ao Chefe”. Que diriam as chancelarias? Enviariam notas soturnas de preocupação. Foram presos os dois juízes do Tribunal Constitucional que libertaram jornalistas que tinham investigado uma venda de armas turcas na Síria, ou seja, um apoio ao Estado Islâmico? Mais uma nota de surpresa e de indignação. Seria isso que aconteceria se fossem estas as notícias.
Só que são mesmo estas as notícias. Erdogan, depois do golpe militar falhado, decidiu desencadear todas as medidas possíveis para destruir a contestação social e os protestos democráticos. Nada o limita agora, e as autoridades europeias, sabendo-o, põem-se ao seu lado, pelo silêncio mais do que pela anuência.
Sonhando recompor o império otomano em nome de um partido religioso que tem desmantelado a tradição laicista do Estado turco, que fora criada por Ataturk desde a fundação da república moderna, Erdogan construiu lentamente o seu poder. O movimento islâmico teve 8% em 1987, 16% em 1991, 21% em 1997, mas, já com Erdogan, teve 34% em 2002, 46% em 207 e 50% em 2011. Controla hoje todas as estruturas do Estado.
Ao longo deste percurso, foi sempre vitoriado pelas potências internacionais. O então presidente Bush foi discursar cúpula da OTAN em Istambul, em 2004, vangloriando o sucesso de Erdogan: “o vosso país é um exemplo”. Na OTAN e com uma sólida aliança com Israel, raramente perturbada por escaramuças verbais, este estranho regime islâmico manteve-se como um pilar da política de Washington na região. A União Europeia reforçou esta aliança, ao atribuir-lhe o papel de guardião das fronteiras para parar os refugiados, pagando-lhe e fazendo concessões de monta a Erdogan, precisamente quando ele dirigia a repressão sobre os jornais independentes e sobre os partidos de oposição.
Militarmente, este apoio é um erro que acentuará os riscos de segurança na Europa, porque o alvo de Erdogan na região são as forças curdas, precisamente as únicas que combatem no terreno contra o Estado Islâmico.
Socialmente, este domínio absoluto também agrava as tensões na Turquia, um dos estados mais desiguais da OCDE (os 1% mais ricos tinham 38% da riqueza nacional em 2000 e já detinham 54% em 2014, um progresso impressionante).
O golpe de estado que agora está a triunfar na Turquia é portanto uma ameaça para a população turca e para quem vive no Mediterrâneo ou na Europa. O mundo ficou mais perigoso com a ofensiva de Erdogan.
Publicado originalmente no jornal Público.
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