Quando em 1516 o inglês Thomas Morus publicou Utopia, descrevendo a ilha-reino imaginária de mesmo nome — aquela que seria “a melhor das Repúblicas” — logo obteve sucesso de público. Para batizar esta sociedade, criou uma nova palavra, o neologismo “ou-topia”, articulando as palavras gregas “où”, não, e “tópos”, lugar, o não lugar ou o lugar feliz, graças à sua dupla etimologia. Com o transcorrer do tempo, convertida em clássico, a obra tornou-se muito mais que “apenas” uma importante peça literária, mas um marco fundacional para o pensamento político e filosófico ocidental.
Morus (ou More, como também é grafado o seu nome) seguramente não foi o primeiro a descrever uma sociedade ideal, muitos outros autores já o haviam feito em outros períodos e lugares, como por exemplo, Platão com a sua República, obra que por sinal inspirou Utopia. Sua importância se dá dentro do contexto europeu, representando um símbolo do pensamento humanista do Renascimento. Descrevendo uma sociedade cujo o ser humano é o centro, supera o modelo que imperava na Idade Média, quando a capacidade de agência humana era limitada, pois seu destino havia sido já decidido por Deus.
Escrita 24 anos após o início da violenta conquista europeia da América, ela expressa em certa medida o horizonte de mudanças aceleradas que a sociedade europeia vivia no alvorecer de sua transição para o capitalismo. O contato com os povos americanos trouxeram a tona ideias e costumes diferentes, além de novas possibilidades para o pensamento europeu. Não por acaso que o livro descreve a ilha de Utopia a partir dos relatos feitos à Morus pela figura do navegador Rafael Hitlodeu, de origem portuguesa, um dos países protagonistas destas viagens intercontinentais. Apesar de ser descrito que Utopia não encontrava-se registrada nos mapas, fica subentendido que a ilha estaria situada na América.
A singularidade da sociedade exposta traz aspectos que a projetaria como uma sociedade harmoniosa, com uma estrutura de valores éticos e morais distantes das que imperavam (e ainda imperam) no ocidente. Uma sociedade em que nada é de ninguém, mas tudo pertence a todos. Onde o bem comum é mais importante do que o bem individual. Onde a guerra era abominada e a caça tida como loucura. Em que o ouro e outros metais ditos preciosos não têm valor algum. Em que um dia de trabalho tem seis horas, uma noite de sono tem oito e o resto do tempo é ocupado por cada um como desejar. Onde a busca pelo prazer, mais do que uma possibilidade efêmera, é socialmente estimulada, como escreve Morus, “os utopienses inclinam-se a pensar que nenhum prazer é proibido, desde que dele nenhum mal se origine.” Mais quais seriam esses prazeres? “Por prazer, os utopienses entendem toda atividade, estado da alma ou do corpo em que, de acordo com a natureza, a pessoa encontra satisfação. Assim, estão corretos ao considerar como naturais todos os apetites.”
Por outro lado, ambiguidades e contradições estão presentes na sociedade utópica de Morus. A mais evidente delas é a presença da escravidão na ilha, ainda que com parâmetros morais diversos da forma como a Europa utilizava o trabalho escravo em seu tempo. Morus não soube projetar uma sociedade economicamente viável que pudesse prescindir do trabalho sujeitado pela escravidão. Poderíamos ainda apontar aqui outros elementos incoerentes e mesmo ilógicos na organização social de Utopia, como no detalhamento das normas urbanísticas ou no rodízio de trabalho imposto a maioria dos cidadãos utopienses, ambas impraticáveis em seus próprios termos. Estas ambiguidades foram, em grande medida, intencionalmente colocadas por Morus, mais do que descrever uma sociedade modelar, ao qual deveria servir de inspiração para outros povos, buscou trazer elementos problematizadores, que provocassem reflexão.
Talvez a principal lição legada por Thomas Morus é que a sociedade se organiza da forma que surge das interações entre os homens e as mulheres que a compõem. A utopia não parte de um ponto fora do sujeito histórico, como de Deus (ou do mercado, que hoje desempenha função análoga), mas sim do próprio sujeito. Isto quer dizer que toda utopia, mesmo falando de um futuro fictício, fala em grande medida dos problemas da época em que foi escrita, projetando caminhos possíveis para sua superação. A utopia possui a sua própria história, que é a história do inconformismo intelectual diante das formas do mundo estabelecido. Traz em si um libelo; de aparente simplicidade e obviedade, mas com importantes implicações, que é a noção de que as sociedades são fruto da vontade e ação coletiva. Se as sociedades são humanamente organizadas, como decorrência, carrega a possibilidade de projetar uma organização social diferente, em que esse quadro possa ser mudado.
Mesmo transcorridos cinco séculos de sua publicação, a Utopia de Thomas Morus, ainda que com as devidas mediações, é uma obra que merece ser lida e debatida. Como não conferir atualidade a passagens como essa: “Quando repasso na memória as várias repúblicas que vicejam hoje em dia, que Deus me ajude, nada vejo senão uma conspiração dos ricos, que engordam seus negócios sob a capa e o nome da República.”?
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