Brasil: um golpe de Estado em transmissão direta



Por Francisco Louçã

Assistimos no Brasil a um golpe de Estado em câmara lenta. É assim que se procede no século XXI: em vez de tanques nas ruas, tudo começa com um juiz que quer derrubar um governo, declarando guerra ao princípio da soberania democrática. É golpe curto, bem sei, prender para eliminar politicamente e depois deixar as coisas seguirem o seu destino.
Para este propósito monumental, vem o juiz. O juiz é um poder, e neste caso é certamente um poder especial, pois ignora a proclamada separação de poderes e atua fora da lei, mas é um poder que pode tudo, pois não será corrigido em tempo útil, se é que alguma vez o será. O mal está feito, a desconfiança semeada, o pânico nas ruas, só não sabemos como vai prosseguir a saga.

Começou com a primeira detenção de Lula que era ilegal, e era mesmo. Depois, a escuta será ilegal, e é, a sua divulgação um crime, e é, a escuta abrangia todos os advogados de um escritório, e isso é delirantemente ilegal, o juiz é suspeito de intuito partidário, e não o esconde, a própria perseguição e o pedido de prisão preventiva não têm fundamento legal, e não tem mesmo, mas o juiz é um poder inexpugnável e por isso pode desencadear uma tempestade.
Precipitado pelos magistrados golpistas, a manobra decide-se por estes dias no balanceamento dos movimentos da opinião pública, na ocupação da rua, nos ajustes de contas partidários e sobretudo na corrida contra o tempo. O que é certo é que nunca tínhamos visto um golpe de Estado assim: no Brasil, em 1964, no Chile, em 1973, na Argentina, em 1976, foi com baionetas que a ditadura avançou e não com sentenças ou acusações judiciais. Este novo tipo de golpe é mais eficaz, mobiliza a dúvida e espalha os ódios, disputa a aceitação e mesmo a participação de parte da população, ocupa o terreno do simbólico, que é a sede da política. Esta técnica de golpe de Estado neutraliza a argumentação e assim exclui a razão, porque se baseia na hegemonia afirmada de um poder supremo e imune à democracia. O César é o juiz, que se apresenta como um pai moralizador ou como o braço da vingança divina. Ele é o poder que pode tudo e por isso dispensa uma ditadura, se o choque e pavor tiverem como consequência a destruição eleitoral dos seus adversários, e neste caso a decapitação política de Lula, o mais temido candidato a re-presidente. O golpe tem este objetivo preciso: prender Lula, seja com que pretexto for.
O golpe está por ora a vencer, mas virá o processo de demissão de Dilma, conduzido por uma comissão parlamentar em que mais de metade dos deputados está a contas com a justiça, e esse será o segundo ato da farsa. Todos estamos a adivinhar o desfecho.
A vingança da direita
Esta farsa grotesca, este golpe, havemos de convir que foi preparado ao longo de muito tempo. Havia esse ódio de classe contra Lula, um torneiro mecânico feito grande do país, havia o medo social das elites urbanas contra a massa popular em cidades de quinze milhões de habitantes, havia a raiva de latifundiários contra os sem-terra, havia as listas de sindicalistas a assassinar, tudo se foi conjugando para estes dias de golpe.
Mas, ainda assim, mesmo com tanto ódio, nada fazia prever a cavalgada dos juízes e dos seus partidários. De facto, Lula governou sem beliscar os interesses dos que temem pela propriedade e pelo estatuto, o seu partido foi-se habituando aos salões e cultivando a intriga. Nem a terra foi distribuída nem a indústria e a finança foram ameaçadas ou entregues ao povo, que recebeu uns reais para que a pobreza ficasse menos pobre, umas escolas e universidades para os seus filhos e muita paciência para todos porque o Brasil ainda há-de ser um imenso Portugal.
O pouco que mudou, mudou alguma coisa para muita gente dos de baixo mas nada para os de cima. E o Brasil viveu tranquilamente o encabulamento da Copa do Mundo e depois voltou à sua vida de todos os dias. Nada fazia prever o golpe, portanto.
Dilma remou na mesma maré. Inaugurou o segundo mandato cedendo tudo à direita, nomeando para postos chaves do governo o homem que seria o ministro das finanças do seu adversário e uma representante de terratenentes para a agricultura. Porque deu tudo aos adversários, o golpe parecia coisa de ficção ou de jogo de computador.
Até que chegou o Caso Petrobrás, ou Lavajato. E ele tocou no ponto frágil de toda esta construção, os partidos, tanto do governo como da oposição. O principal partido de direita que faz parte do acordo governista, o PMDB, distinguiu-se entre os que, com o presidente do Parlamento Federal, Eduardo Cunha, correm contra o tempo da acusação judicial e da prisão, depois de as suas contas no estrangeiro serem identificadas e ser exibida a mão que lhe pagou. Outra parte do PMDB, com o vice-presidente Temer, perfila-o como sucessor de Dilma se conseguir a sua impugnação.
No PSDB, o principal partido de oposição, luta-se entre os que querem demitir Dilma agora (com alguma acusação derivada do Lavajato), para provocar uma eleição a curto prazo, ou os que querem demiti-la depois (com o processo rocambolesco sobre o financiamento da campanha eleitoral), conforme as conveniências de cada um, seja Serra, Alckmin ou Aécio Neves, colegas e inimigos. Todos correm contra o tempo e isso cria uma irracionalidade colectiva: os chefes partidários, apanhados na teia da corrupção e irmanados na desgraça, escolheram todos o quanto pior melhor. Quanto mais depressa incendiarem o Brasil, mais depressa esperam sentir-se aliviados da pressão sobre cada um deles.
A fragilidade das esquerdas e do centro
É preciso reconhecer que o PT alimentou esta monstruosidade. Os seus dirigentes acreditaram que a composição da aliança governista criaria uma distribuição de benesses e um espírito situacionista que cimentaria esta multidão de partidos e de interesses graúdos. Chegou-se ao ponto, quanto as primeiras frestas estalaram, de agenciar a compra e venda de votos de deputados com o Mensalão, para manter o governo a flutuar entre as suas próprias piranhas. A força do PT, a sua capacidade de ter um voto eleitoral maioritário, mas num sistema eleitoral que lhe rouba a maioria e favorece o aliancismo tático, deu lugar a um sistema de corrupção que se tornou uma marca de governo. Ao abeirar-se dos donos do Brasil, o PT pareceu-se cada vez mais com eles, nos tiques e nas ambições.
Só que essa mimetização e essas alianças nunca aplacariam o ódio de classe nem amenizariam a raiva da direita que era forçada a partilhar o poder. Por isso, a espiral da radicalização transformou ainda mais os partidos, com um parlamento em que as bancadas que cresceram são as das seitas religiosas fanáticas, os defensores do tiroteio e dos fuzilamentos policiais, ou de outras particularidades.
O que agora junta esta turbamulta é o alvo Dilma e, sobretudo, o alvo Lula. Os magistrados golpistas pressentiram a oportunidade e interpretaram o momento de descontrolo, descendo à terra como anjos exterminadores. E temos golpe.
Seria ocioso dizer agora que esta esquerda nunca aprendeu nada. Que um sistema eleitoral que corrompe é um salvo-conduto para a direita. Que alianças com partidos ou políticas destruidoras são impeditivas da mobilização do povo. Que o braço dado com a finança é repressão da vida das pessoas. Mas tudo isso é a vida falhada de um governo que criou tanta expectativa e que prometeu tanto a tanta gente que já viveu tanta mentira.
O Brasil tornou-se assim um pavor de ameaças neste golpe em câmara lenta: estamos a vê-lo, adivinhamos como vai acabar, mas o filme é inacessível para quem olha. Vemo-lo, em todo o caso, e, nele, o que é insuportável é a arrogância dos golpistas, o que é execrável é a justificação justiceira para a ilegalidade e para o arbítrio sem regras, o que é triste é este fracasso político de um governo que esperava ocupar o poder e viver dele como se o tempo passasse e tudo compusesse. Como se viu, a história, que é quem tem o poder ou o assume, virou-se sobre si própria e começou a destroçar este ciclo de governança.
Mas, olhando o Brasil daqui de fora e conhecendo tanto do seu dentro, só vejo desperdício de esperança, tanta tristeza, tanta gente extraordinária que está a ser sacrificada, tanta ameaça contra a liberdade, tanta pesporrência golpista, tanta violência evocativa da ditadura militar, tanta insuportável condenação dos mais fracos: eles não têm direito. Como se este golpe avançasse e o povo ficasse parado a ver, já não acreditando em nada.
Fazer contas no Brasil
Folha de São Paulo publicou em Abril as então recentes sondagens sobre as presidenciais no Brasil, que se devem realizar em 2018.
As contas impressionam e explicam bem alguma da motivação política dos recentes acontecimentos: Lula é o único candidato de topo que sobe nas duas sondagens e está mesmo à frente numa delas, na outra fica empatado com Marina Silva (que desce). Os dois hipotéticos candidatos do PSDB, o principal partido de direita que está a liderar o movimento para a demissão, caem ambos: Aécio Neves, que já foi derrotado por Dilma, seria derrotado por Lula, e Alckmin, o outro possível candidato tucano, tem menos de metade das intenções de voto de Lula. Quanto a Michel Temer, o vice-presidente que aspira a ser presidente se Dilma vier a ser demitida, tem em ambas as sondagens 2%. Se a direita não elimina Lula da corrida, prendendo-o ou arrastando-o pelos tribunais, bem a pode vir a perdê-la.
A pergunta é então: porque é que Lula sobe, apesar da imprensa que o massacra e dos inimigos que não lhe dão tréguas? Há várias explicações possíveis. Sobe porque as primeiras salvas da perseguição foram exuberantemente fora-da-lei, porque cheiravam demais a manobra partidária, ou porque os candidatos da direita estão tão envolvidos no escândalo que enlameia a política brasileira que não se podem apresentar como alternativa – nos Panamá Papers lá apareceu mais uma revoada de figurões desses partidos. Por tudo isso, Lula sobe, apesar da barafunda criada pela estratégia do seu partido com múltiplas alianças com os partidos mais inapresentáveis da direita. Apesar de tudo isso, sobe porque a alternativa é tão venal que Lula aparece como um amigo para uma parte importante do povo – o que é certo é que vai na frente.
Acresce que a eventual demissão de Dilma Rousseff só agravaria o imbróglio jurídico, não o resolveria. Depois da votação da sua demissão no parlamento federal, ela ficaria suspensa até decisão do Senado, seis meses depois (com Jogos Olímpicos pelo meio). Se o Senado rejeita a demissão, então ela volta a assumir a presidência. Se a confirma, temos seis meses perdidos em crise política.
Jogando contra a incerteza e sublinhando as fraquezas dos seus adversários (o processo contra Eduardo Cunha, o presidente do Parlamento e líder do grupo derrubista no PMDB, o maior partido parlamentar, ainda vai dar que falar), Dilma quer recuperar a iniciativa política. O prolongamento da crise joga a seu favor, até porque Temer, o vice-presidente, tem que ser imputado pelas mesmas acusações que a atingem e que agora se resumem a ter assinado decretos com “pedaladas fiscais”, ou seja, a antecipação de pagamentos por bancos para facilitar a cosmética orçamental – o que foi igualmente subscrito por quem pede a sua demissão, o próprio Temer.
Confusão? A sondagem diz que não.

* Francisco Louçã é professor catedrático de economia na Universidade de Lisboa. Foi deputado (1999-2103) e é hoje membro do Conselho de Estado. Este texto foi publicado originalmente em abril de 2016 no jornal Público, de Lisboa, e recebeu algumas pequenas alterações para ser publicado no livro “A resistência internacional ao golpe” que será publicado nos próximos dias no Brasil.

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